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  • Foto do escritorAna Luiza de Figueiredo Souza

Cinco reflexões sobre o episódio "Filhos"(Greg News), segundo uma pesquisadora de (não) maternidade

Atualizado: 30 de ago. de 2022

O último episódio do programa Greg News (HBO), que antecede a licença-paternidade do apresentador Gregório Duvivier, foi ao ar recentemente. O tema? Filhos. Aproveitei o gancho para dividir algumas reflexões, em diálogo com os dados e a abordagem presentes no episódio.


Complemento aos dados trazidos


O episódio começa com a afirmativa de que ter filhos “está um pouco fora de moda”. Embasa essa constatação em dados que mostram que, nos países analisados, as taxas de natalidade tiveram queda histórica — o que, por sua vez, privilegia a parentalidade biológica nas análises. Compilo esses dados em minha pesquisa de doutorado, bem como em artigos que dela derivam.


Porém, é importante contrastar tais dados com o aumento da parentalidade tardia. Ou seja, quando alguém se torna mãe/pai após os 35 anos de idade. Portanto, a juventude que não tem, não planeja ou hesita em ter filhos hoje não necessariamente permanecerá sem filhos daqui a uma década.


Mesmo porque em diversos países, inclusive no Brasil, os direitos reprodutivos não são plenamente garantidos, sobretudo para mulheres. A maioria das legislações ao redor do globo não permite que interrompam gestações indesejadas ou decorrentes de violência, por exemplo. Essa cultura misógina generalizada faz com que centenas de milhares de mulheres (e meninas) se tornem mães contra sua vontade.


Pessoas com filhos ainda são maioria esmagadora. Para afirmar que de fato houve redução nesse número, é preciso acompanhar essa população sem filhos, conferindo se a maior parte dela envelhecerá sem eles.


Lentes otimistas


A abordagem do programa ao tratar do investimento em ações para reverter a degradação ambiental diverge do que os principais ambientalistas e pesquisadores do clima indicam. Segundo eles, as mudanças climáticas são mais drásticas do que o previsto, enquanto o combate a elas ainda é fraco. Paulo Eduardo Artaxo Netto, um dos maiores especialistas em mudança climática e aquecimento global no Brasil e no mundo, faz coro a essas vozes.


Além de vice-presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp), é autor-líder do capítulo seis do Sexto Relatório de Avaliação – AR6, divulgado no dia 9 de agosto de 2021. O documento, produzido pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), sintetiza o conhecimento científico sobre as bases de estudos relacionadas ao clima. "Somos responsáveis por mudanças drásticas no clima que não têm precedentes", afirma o pesquisador em depoimento durante workshop promovido pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Ele continua:


O relatório também aponta que, "a menos que haja reduções imediatas, rápidas e em grande escala nas emissões de gases do efeito estufa, limitar o aquecimento a 1,5ºC pode ser impossível". Essa é a meta do Acordo de Paris, e o IPCC está colocando que o esforço para fazer isso está ficando cada vez mais difícil.


(...) Ou seja: o tempo já está passando, é hora de agir imediatamente para reduzir a emissão de gases do efeito estufa. (...).


A mudança climática já está afetando todas as regiões habitadas do Planeta. Estamos observando extremos de calor em praticamente todas as regiões do mundo, e a mudança no número de extremos de chuva pesada está acontecendo significativamente na Europa, na Ásia e no sudeste da América do Sul. As mudanças climáticas chegaram e atingiram todo o Planeta. Não há canto no Planeta onde isso não seja sentido hoje.


Apesar de as lideranças mundiais, em geral, afirmarem que há urgência em superar matrizes energéticas poluentes e em construir agendas políticas ecológicas, na prática, as mudanças custam a avançar. Também falta pressão sobre os principais emissores de gases de efeito estufa, bem como sobre empresas cujo impacto socioambiental é desastroso (alguns exemplos podem ser vistos aqui, aqui e aqui).


O mundo não está "à beira de um colapso climático”. Já estamos em um colapso climático, com efeitos que já são irreversíveis, sentidos sobretudo pelas populações mais fragilizadas.


No Brasil, entidades protetoras do meio ambiente apontam os danos que as mudanças climáticas causadas pela ação humana e a falta de medidas efetivas de preservação ambiental causam à Amazônia, ao Pantanal, ao Cerrado e à Mata Atlântica. Para além de mapear esses danos e seus efeitos, essas organizações também conduzem projetos voltados à recuperação de fauna e flora, ao desenvolvimento sustentável, à integração entre respeito aos ecossistemas e oportunidades para as populações locais, entre outras iniciativas que chegam onde o poder público, muitas vezes, é ausente ou relapso.


Conforme o próprio programa aponta, doar para essas entidades traz contribuições consideráveis aos esforços pela sobrevivência do planeta, pois "são essas entidades [que lutam pelo clima]" que "fazem pressão nos governos para mudar as políticas públicas e construir uma legislação mais eficiente para a proteção do meio ambiente". O que revela que essa pauta não é prioridade em muitas gestões.


Recorte privilegiado


Duvivier enfatiza a necessidade de lutar por conquistas políticas e ambientais, algo que ele espera que a própria filha faça, no futuro. Ainda assim, ao falar dos motivos para trazer alguém ao mundo, o apresentador enumera exemplos relacionados ao lazer, aos afetos, às belezas. Perspectiva pela qual é possível deduzir que ele mesmo pôde enxergar a vida ao longo dos anos. Tanto que descreve o mundo como "uma festa estranha". Finaliza dizendo que gostaria que a filha tivesse a chance de experimentar todas as pequenas e grandes atividades que fazem parte de estar vivo, ser parte de um coletivo tão dinâmico quanto potente.


Essas motivações são válidas e de âmbito pessoal. Até porque ele pode proporcionar essa perspectiva de vida à filha. E esse é um ponto importante a ser considerado. A pequena Celeste nasce filha de uma das pessoas com maior visibilidade no país, que já veio de boa formação, boa situação econômica e, com o avanço da carreira, adquiriu patrimônio considerável. Ela tem muito mais chance de aproveitar os prazeres e impulsionar os movimentos anteriormente enumerados pelo pai do que a maioria das crianças nascidas no Brasil e mesmo no mundo.


Assim como a experiência de parentalidade do casal Gregório e Giovanna será bem distinta da de outros pais e mães sem a mesma estrutura. O próprio fato de, por mais engajados que sejam (com causas socioambientais, culturais e políticas), poderem dar uma pausa nas atividades que tocam para aproveitarem e se prepararem para a chegada de Celeste denota um lugar bem diferente daquele que a maioria de nós ocuparia se tivesse filhos.


Ideal seria que todas as crianças nascessem com essas mesmas oportunidades. Mas isso é impossível. Não existe planeta suficiente para sustentar esse estilo de vida para bilhões de pessoas. Pelo menos não nos moldes neoliberais. Para além de reconhecer (e combater) a profunda desigualdade do nosso funcionamento socioeconômico, precisamos entender que a visão de Duvivier parte de um lugar um tanto privilegiado, diferente daquele que boa parte de nós poderia proporcionar aos filhos. Sem alterar profundamente nossos modos de produção, de consumo e a distribuição de riqueza, não há como oferecer esse horizonte a todos.



Balança ambiental


O programa alerta para a falácia de que a chegada de bebês seria uma das grandes responsáveis pelo colapso ambiental. De fato, não é tanto o nascimento de crianças que causa esses danos, mas o nível de recursos naturais demandados por cada pessoa no planeta, com sua respectiva restituição. Isto é, ações que cada uma dessas pessoas realiza para mitigar o impacto ambiental por elas causado.


Nesse sentido, uma pessoa sem filhos com alto poder de consumo em um contexto extrativista gera impacto ambiental maior do que uma família que vive com rendimento (e, consequentemente, consumo) mínimo(s) nesse mesmo contexto. Do mesmo modo, uma comunidade originária cujos modos de vida estejam em harmonia com os ecossistemas que a rodeiam também gera menos impacto ambiental do que uma única pessoa altamente consumista.


Mesmo que todas as pessoas do planeta deixassem de gerar crianças — algo improvável, embora haja estudos que relacionem os efeitos da poluição à queda de fertilidade entre homens e mulheres ao redor do globo —, essa atitude por si só não reverteria o colapso ambiental. Para que isso aconteça, é preciso investimentos para recuperar áreas desmatadas, fontes d'água poluídas, espécies em risco de extinção, o equilíbrio entre os componentes da nossa atmosfera, assim por diante.


Em paralelo, precisaríamos revisar esse estilo de vida hiperconsumista, responsável não somente pela acelerada degradação ambiental, mas também por inúmeras desigualdades, dinâmicas exploratórias e perda de qualidade de vida mesmo entre aqueles que dispõem de meios para contrabalancear tais efeitos negativos com experiências positivas.


Feitos esses investimentos de forma comprometida e recorrente, não seria necessário temer as crianças que chegam. Elas, inclusive, trazem muitas oportunidades interessantes, além de possibilitarem uma série de empregos e estruturas. O problema é que essas mudanças são estruturais e precisam de mais do que prega o falacioso discurso de "se cada um fizer sua parte, teremos um mundo melhor". Conforme já colocado, não há tempo nem planeta suficientes para que cada pessoa crie consciência e altere seus hábitos de consumo. Mesmo porque não são elas as principais destruidoras do meio ambiente, e sim o pacto cruel entre Estados e grandes empresas.


Quem voluntariamente deseja derrubar uma floresta inteira para produzir produtos de cabelo? Quem acha bom não ter nenhuma praia limpa para se refrescar no verão? Quem quer que animais passem a vida enclausurados, em condições degradantes, para produzir muito mais carne do que qualquer um conseguiria comer? Quem escolhe escravizar mão de obra infantil para ter uma blusa? Na maioria das vezes, as pessoas são forçadas a se tornarem cúmplices de um sistema que também as explora. Ninguém deveria escolher entre ingerir agrotóxicos (que também destroem o solo, os insetos polinizadores e as fontes d'água) ou ter acesso a produtos orgânicos. O uso de agrotóxicos deveria ser banido e o cultivo orgânico deveria ser a regra. Já existe conhecimento e tecnologia suficientes para isso.


Do mesmo modo, não seria necessário "diminuir o consumo de plástico" se houvesse leis federais ou acordos globais que proibissem sua produção, obrigando as fabricantes de plástico (bem como grandes empresas que o usam em larga escala) a destinarem verba para a retirada do plástico e do microplástico que seus produtos ajudaram a espalhar. As empresas que descumprissem o prazo para cessar o uso de plástico e seus derivados seriam penalizadas por multas altíssimas, sob risco de terem suas atividades suspensas. O plástico não existia até poucas décadas atrás, é viável retomar as atividades comerciais sem ele. Já a fiscalização dos programas de retirada dos resíduos plásticos remanescentes ficaria a cargo de governos estaduais ou federais, com o auxílio de especialistas. Afinal, se o objetivo das empresas é o lucro, seria ingênuo esperar que se empenhassem voluntariamente em iniciativas que, para salvar o planeta, necessitassem de investimento financeiro por parte delas.


Mudança de paradigma


A retórica de que "temos filhos para mudar o mundo" precisa ser superada. É claro que planejar ou ter filhos pode fazer as pessoas se empenharem mais em construir condições de vida melhores, sobretudo naquilo que impacta mais diretamente esses filhos. Porém, dizemos isso há no mínimo três gerações e a causa ambiental continua negligenciada, enquanto conquistas sociais e políticas estão em permanente ameaça. Postergamos essas soluções para os que virão, e o resultado nos assombra. Temos que construir um mundo melhor independentemente do nosso planejamento familiar.


Creio que o equívoco está justamente no enfoque individualista. Não deveríamos pensar em melhorar o mundo porque temos/queremos filhos, nem achar que já fizemos nossa parte por não tê-los/planejá-los. Precisamos lutar por um planeta sustentável, por uma sociedade mais justa, porque já existem pessoas nesse mundo. E nós, recém-chegados ou veteranos, fazemos parte dele. Cobrar políticas públicas, votar em candidatos comprometidos com a defesa do meio ambiente e dos direitos civis, contribuir com projetos socioambientais. O caminho é esse. E é urgente.


Ao contrário do que uma das falas mais emocionadas de Duvivier dá a entender, nunca houve apenas existência individual. Estamos todos, desde sempre, em vivência coletiva.


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Gostou desse artigo? Acompanhe o Primeira Linha para publicações semelhantes.


Confira aqui o post sobre as reflexões em torno de episódio filme Filhos, do programa Greg News, em formato compacto.


As temáticas mobilizadas nessa resenha são melhor exploradas no livro Ser mãe é f*d@!”: mulheres, (não) maternidade e mídias sociais. Mais conteúdo sobre o livro nesta aba.


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