Conforme apontam diferentes autores, vivemos sob a cultura da alta performance. Trata-se de uma lógica calcada na ideia neoliberal de sujeito autônomo, estimulada pelo próprio mercado capitalista. Nela, devemos ter um desempenho otimizado em todas as áreas nas quais atuamos. O problema é que, segundo a mesma lógica, todo e qualquer desempenho é passível de melhoria. Em outras palavras, por mais produtivo, capacitado e eficiente que alguém seja, existe a crença (e a cobrança) de que pode se sair ainda melhor. Portanto, ninguém consegue atingir o nível de otimização exigido. Dinâmica que também afeta as mães.
São cobradas (e se cobram) a ser mães cada vez melhores. Para isso, precisam otimizar o tempo para cumprir todas as atividades, em uma maternagem e rotina — pessoal, física, profissional — baseadas na ideia de alta performance. A influência mercadológica que resulta na necessidade de pensar projetos de vida também repercute na maternidade. Crianças e mães representam uma faceta importante do mercado capitalista, pois geram o consumo de produtos e serviços cada vez mais variados e lucrativos. Há interesse comercial na maternidade, sobretudo em modelos maternos e de maternagem que demandem grande investimento financeiro das mães, em si mesmas e nos filhos. Mais ainda: cresce o número de habilidades e saberes que as mães precisam dominar, dentro de uma cultura que valoriza não apenas a criança, mas também seu processo de desenvolvimento (físico, psíquico, sociocultural) enquanto pessoa em formação, que deve ser cuidada e orientada por adultos capazes de oferecerem a ela todos os estímulos de que precisa para se tornar um adulto funcional.
Técnicas de reprodução assistida, apetrechos para bebês, livros e brinquedos educativos, congelamento de óvulos, tablets, florais, aplicativos para acompanhar o desenvolvimento das crianças, cursos de amamentação, oficinas de orientação parental, clube de esportes, receitas para variar a dieta, manuais de educação respeitosa, aulas de algum idioma estrangeiro, rotina de exercício. Quantos desses anúncios são feitos para o público materno? E quantas mães passaram a monetizar esse tipo de oferta para outras mães, no papel de influenciadoras ou consultoras?
Apesar do crescimento de um discurso semelhante ao naturalista, o sofrimento é muitas vezes suprimido nas experiências maternais no que se relaciona aos filhos. Se, nos séculos XVIII e XIX, o bem-estar materno era preterido para priorizar as necessidades e cuidados aos infantes, atualmente se acrescentam cobranças e sacrifícios às mães para poupar os filhos. Essa prática opera na lógica contemporânea da alta performance e da estimulação intensificada. Uma experiência materna mais completa incluiria maior quantidade de desafios a serem superados, que validariam tal vivência como legítima, ativa e interessante. Relaciona-se, também, à valorização da criança e sua crescente importância social.
É nesse contexto que surgem os que têm sido popularmente chamados de pais-helicóptero, motivo de preocupação para os especialistas: pais hipervigilantes, superprotetores e ultracontroladores que, na tentativa de pouparem os filhos de experiências desagradáveis, acabam tornando-os dependentes, fragilizados e incapazes de lidar com demandas sociais tais como se adaptar a dinâmicas de grupo ou resistir a intempéries. No tocante às mães, outro fenômeno também se destaca: a assim chamada maternagem ativa.
Muito em voga nos últimos anos, faz com que número considerável de mães se envolvam em um modelo de maternagem intenso, que demanda a presença constante delas durante as atividades rotineiras dos filhos. Essas mães-helicópteros não deixam de ser resultado de uma cada vez maior preocupação com o desenvolvimento juvenil saudável, que se reflete em novas cobranças maternas. Afinal, a maioria das atribuições parentais costuma ser cobrada das mães, e elas são mesmo as principais responsáveis pelo cuidado e pela criação dos filhos em boa parte dos casos.
A hipervigilância e a superproteção que as mães têm com os filhos se associa ao alto custo de mantê-los. É possível relacionar tais sintomas à dinâmica da sociedade de controle, na qual este é exercido por todos, sobre todos e também enquanto autocontrole, em vez de centrado em uma configuração hierárquica. No capitalismo financeiro, ter acesso a crédito é sinal de êxito. O modelo pessoal é o do indivíduo endividado, tanto em termos econômicos quanto em relação ao tempo de que dispõe. Nessa sociedade, as tarefas não se encerram. As pessoas estão sempre empreendendo uma atividade para alcançar outra, em dívida com metas, desejos e obrigações. A alta performance é o parâmetro dos pais-helicópteros, e não seria equivocado supor que esperem o mesmo desempenho dos filhos. Precisam compensar tamanho investimento (emocional, temporal, financeiro) de algum modo.
A relação entre capitalismo e criação dos filhos transforma os pais em assíduos consumidores de determinados produtos e serviços. Tem-se mais uma das configurações da sociedade de controle, na qual o poder das empresas se estende para a vida privada. Não é preciso internalizá-lo, ele chega até as pessoas. A partir do momento que se têm ou se planejam filhos, uma série de demandas mercadológicas passa a integrar as preocupações e aspirações parentais. O mercado oferece opções de consumo que o casal (ou a mãe ou o pai) precisa, dentro de suas possibilidades financeiras, escolher ou se recusar a escolher. Existe uma cultura, em muito estimulada pelo mercado capitalista, de conquistar — e expor — o sucesso em todos os âmbitos da vida, inclusive o familiar. Isso torna a própria satisfação com a maternidade ou a paternidade uma prática compulsória. Para sentirem — ou performarem sentir — tal satisfação, investimentos materiais e imateriais são necessários. Algo que muitos estão dispostos a empreender, a fim de se encaixarem no ideal de pais que fizeram tudo pelos filhos, deram a eles as melhores condições de vida, o maior número de estímulos e possibilidades.
É evidente que o desejo de querer dar conforto (material, afetivo) aos filhos se faz presente entre muitos pais e, como mais interessa a esse artigo, mães. O que certamente não se relaciona apenas a demandas e expectativas socioculturais ou de mercado, mas também ao amor pelos filhos, a vontade de dar a eles uma vida digna, feliz, potente. O ponto para o qual atento diz respeito à necessidade de ponderação. Se a maternagem ativa tem sido mais fonte de dor, cobrança e instabilidade emocional do que de satisfação, empenho e realização, talvez seja melhor rever alguns hábitos. Adaptar certas exigências, muitas vezes, autoimpostas. Arcar com as responsabilidades implicadas em criar um ser humano é diferente de se guiar por expectativas de desempenho tão desgastantes que inibem aspectos que têm importância tanto para os filhos quanto para as mães. A quem interessa a lista infindável de tarefas que compõem a maternagem ativa? Ela se volta realmente para o bem-estar de quem se toma por filhos? Considera o bem-estar da mãe?
Maternagem ativa e mães-helicóptero são sintomas de uma sociedade cada vez mais capitalizada, que não superou — na verdade, intensifica — antigos problemas, como a misoginia na qual a própria cultura patriarcal se sustenta. É preciso cuidado para não depositar no campo individual aparatos que deveriam ser públicos, bem como para não transformar a vivência materna em algo que, na tentativa de evitar determinados sofrimentos, gera maiores frustrações e pendências a longo prazo.
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Confira aqui o post sobre as armadilhas da maternagem ativa em formato compacto.
Essa e outras temáticas são melhor exploradas no livro “Ser mãe é f*d@!”: mulheres, (não) maternidade e mídias sociais.
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