Quando falamos em maternidade compulsória, precisamos entender que, por mais que exerça influência sobre todas as mulheres, age sobre elas de modos distintos.
Existem modelos maternos e de maternagem hegemônicos que, não por acaso, se ancoram na forma como o patriarcado branco determina que mulheres devem maternar e se relacionar com a maternidade. Assim como os modelos femininos dominantes são voltados para referenciais brancos (e eurocêntricos) do que é ser mulher. Esses parâmetros, muitas vezes, negligenciam ou mesmo excluem manifestações de mulheres não-brancas que divergem daquelas relativas à cultura hegemônica branca.
Tanto que entre mulheres indígenas, por exemplo, se dizer feminista muitas vezes não faz sentido. Entendem que o feminino ali presente não engloba as cosmovisões indígenas, parte de noções que não incorporam o coletivismo pelo qual se relacionam e se constroem, possui pautas e moldes que não as contemplam. Segundo Sônia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).
Esse feminismo, do jeito que é colocado, não atende às visões das mulheres indígenas. A luta das mulheres indígenas está casada com a luta do movimento indígena. As pautas são interligadas, são lutas que se somam. Nossas conquistas estão relacionadas com nossa maior participação nos processos de debate, de conseguirmos pautar assuntos de nosso interesse e nos posicionarmos sem a necessidade de estarmos numa posição de disputa com os homens.
O maior obstáculo é a negação da identidade aos povos indígenas, todos, homens e mulheres. Isso afeta duplamente a mulher. Essa negação marginaliza a mulher, coloca o homem no topo, mas não é essa a nossa lógica. A nossa organização social é de complementariedade.
O processo de apagamento e desvalorização das vivências maternas de mulheres não-brancas é histórico; se associa tanto à colonialidade e ao escravismo quanto à repressão que culturas diferentes da hegemônica sofreram ao longo dos séculos. Para se ter uma noção do tamanho dessa violência, durante o Brasil Colônia, famílias indígenas que fossem flagradas falando idioma diferente do Português eram chicoteadas até a morte. Até dias atuais, o ensino da língua (literalmente) materna é um desafio para as mães indígenas, já que as creches e escolas priorizam o uso exclusivo de Português. Em contextos que constantemente diminuem e apagam as diferentes culturas originárias, transmitir sua cosmovisão aos filhos, além de manter esse referencial vivo, se torna mais uma luta para elas.
Os filhos de escravas indígenas ou negras, a partir dos sete anos de idade, deviam obediência a seus senhores. As cativas deviam ter filhos (para servirem de mão de obra ou fonte de renda aos senhores), mas, muitas vezes, não podiam ser mães. Não nos seus próprios termos. Não sem precisarem inventar maneiras de transmitir valores e afetos aos filhos sem sofrer represálias por isso. Mesmo que desempenhassem função materna com os filhos dos senhores (em sua maioria, crianças brancas), não eram consideradas mães deles nem tratadas desse modo.
Por consequência, mulheres negras e indígenas permanecem sendo as principais responsáveis pela rotina de cuidados com os filhos alheios, em geral na posição (nem sempre remunerada) de cuidadoras ou babás. Além, claro, de se encontrarem em situação de maior vulnerabilidade socioeconômica — conforme apresento em dados no livro "Ser mãe é f*d@!": mulheres, (não) maternidade e mídias sociais.
Ainda hoje, mulheres não-brancas enfrentam obstáculos maternos distintos do que os enfrentados por mulheres brancas que compartilham a mesma situação econômica que elas. Não é raro serem preteridas enquanto parceiras (e, por consequência, como mães dos filhos de alguém), vistas como menos capazes de serem mães consideradas boas, alvo de políticas genocidas que não permitem a manutenção de seus modos de vida. Por isso, quando têm filhos, é comum não conseguirem materná-los da forma que seria mais benéfica para eles e para si mesmas. É o que chamo de maternidade negada.
Tanto que a violência e o abandono social ligados a raça são apontados por mulheres negras como motivos para desistirem da maternidade. Mônica Cunha, coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, explica que a naturalidade com a qual jovens (sobretudo negros) são mortos impõe um cotidiano de dor nas periferias. “As mulheres [negras] vendo isso falam: ‘eu não vou ter filho. Ou morre ou vai preso’", conta ela.
Os filhos de mulheres não-brancas também são vítimas da violência institucional contra ambos. Esterilização involuntária de mulheres pertencentes a determinados grupos étnicos, ataques aos territórios e direitos indígenas, genocídio da população negra. Esses constituem alguns dos perigos a que mulheres não-brancas que pretendem ser ou já são mães precisam se atentar, para proteger a si mesmas e aos filhos. Além, claro, dos casos de racismo cotidianos, praticados contra grupos étnica e racialmente marginalizados no Brasil.
Nesse sentido, ter filhos pode significar dar continuidade à existência de grupos sistematicamente perseguidos e exterminados. Quando ser indígena, negro, pardo ou amarelo faz que alguém sofra agressões não raramente fatais, colocar (ou acolher, enquanto mães adotivas) no mundo crianças indígenas, negras, pardas ou amarelas também é ato de resistência. Por mais que o racismo estrutural tente apagar corpos, mentes e espíritos diferentes dos que são entendidos como brancos, eles persistem, criam vida, pensamento, arte, política, formas de se relacionar com a maternidade, a maternagem e até a não maternidade, visto que o fator raça/etnia também a impacta, seja voluntária ou involuntária.
Nos comentários que recebo nas minhas mídias sociais, mulheres sem filhos não-brancas relatam o exotismo que permeia a insistência das pessoas para que tenham filhos "misturados" ou com traços físicos associados a determinadas etnias. Isso é especialmente relatado entre mulheres amarelas. Enquanto mulheres brancas costumam mencionar o argumento de "passarem adiante os olhos azuis" ou "o cabelo claro" entre os discursos maternalistas a elas dirigidos, cabelo cacheado e pele escura não aparecem entre os atributos que seriam "uma pena" não serem geneticamente transmitidos. Assim, mulheres retintas e/ou pertencentes a algum povo originário percebem o alívio dissimulado daqueles que, no fundo, ficam satisfeitos por pessoas como elas não passarem adiante suas características genéticas.
Para além disso, considerando que a maternidade ganha conotação de resistência e celebração para mulheres pertencentes a grupos étnico-raciais marginalizados, não ter filhos nesses contextos pode ser ainda mais excludente, até encarado como falha perante aquele coletivo, que precisa ser compensada de algum modo. Em comunidades ciganas (ou romani) e no judaísmo, por exemplo, a gravidez e a maternidade são experiências fundamentais na vida das mulheres, atreladas à valoração que recebem nesses meios. Ser mulher cigana ou judia sem filhos pode se mostrar particularmente difícil, até devido à ideia de que são elas as responsáveis por transmitir os costumes às gerações mais novas.
Por mais que existam vários pontos de semelhança compartilhados pelas mulheres quando se trata da maternidade compulsória, reconhecer essas diferenças ajuda a acolhermos melhor as necessidades e vivências de cada mulher.
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Essa e outras temáticas são melhor exploradas no livro "Ser mãe é f*d@!": mulheres, (não) maternidade e mídias sociais.
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