Quando se fala em mulheres sem filhos, os retratos costumam ser um tanto incompletos. Esse é um dos aspectos que minha pesquisa busca sacudir.
São anos em contato com os mais variados perfis de mulheres sem filhos, cada qual com suas histórias e particularidades. Apresento parte delas aqui no site, nas minhas contas em mídias sociais e nas publicações com os resultados do meu trabalho. Entre elas, claro, o livro “Ser mãe é f*da!”: mulheres, (não) maternidade e mídias sociais.
Em primeiro lugar, nem toda mulher sem filhos escolheu não ter filhos. São as que denomino não mães involuntárias. Como o “luto velado” pelos filhos que não vieram não é socialmente reconhecido, elas acabam sendo mais silenciosas (e silenciadas). Mas isso não significa que não estejam presentes nas ambiências digitais.
Algumas tentaram por muitos anos sem conseguirem uma gravidez ou uma adoção definitiva. Os caminhos dessas mulheres são variados. Há quem descubra, no meio do processo, que a busca pela maternidade parou de fazer sentido para elas. Bem como há quem precise aprender a lidar diariamente com a impossibilidade de obter a vida de mãe, que elas tanto queriam.
Outras foram vivendo suas vidas sem se atentarem para quando poderiam ter filhos e, ao perceberem, essa chance passou. Além das que viram os planos alterados com o fim de um casamento de longa data (com a pessoa que imaginavam que dividiria a parentalidade com elas) ou algum evento (acidente, tragédia familiar, doença, alteração brusca na rotina ou no rendimento etc.) que colocou em xeque a possibilidade de virarem mães.
Mais um grupo são as mulheres que gostariam de ser mães, porém desejam fazer isso em circunstâncias específicas. Caso não se encontrem nas condições necessárias para terem filhos da maneira que entendem como satisfatória (por exemplo, dividindo a parentalidade com um/a parceiro/a ou gestando filhos biológicos), preferem permanecer sem eles.
É preciso considerar mulheres cujo desejo de se tornar mãe se mostra mais difícil de ser alcançado. Mulheres preteridas enquanto parceiras (e, consequentemente, mães potenciais dos filhos de alguém), colocadas como incapazes de virarem mães que possam ser consideradas dignas. Mulheres com deficiência, muitas vezes, enfrentam maiores desafios nesse aspecto, bem como aquelas que fogem dos padrões heteronormativos, estéticos e étnicos. Assim, pode-se considerar que essas mulheres têm a maternidade negada, que também abarca opressões sociopolíticas que impedem ou colocam mais obstáculos no trajeto rumo à maternidade.
Entre as involuntariamente sem filhos (ou sem filhos por circunstância), é possível encontrar: a) mulheres em paz com a ausência de filhos (estado de espírito alcançado em maior ou menor tempo para cada uma delas); b) mulheres que buscam alcançar a paz na vida sem filhos; c) mulheres que oscilam entre estarem satisfeitas com isso e sentirem angústia, tristeza ou culpa por não seguirem o roteiro social de virarem mães; d) mulheres que se reconhecem em sofrimento pela não maternidade e procuram maneiras de transformar essa dor em algo além de tristeza; e) mulheres infelizes ou mesmo depressivas por não terem conseguido realizar o sonho de ser mães.
Também existem mulheres que não decidiram se querem ou não ser mães. Umas estão mais inclinadas à maternidade, outras menos, mas nenhuma delas chegou a uma conclusão definitiva sobre o futuro com ou sem filhos.
Além daquelas que ainda não têm filhos, mas os desejam e/ou planejam. Entre elas, se encontram mulheres que afirmam já se sentirem mães, antes mesmo de engravidar ou de dar entrada nos processos de adoção.
Há casos mais delicados. Mulheres que foram mães, mas perderam seus filhos bebês, crianças ou adultos. Perdas que podem acontecer, inclusive, por desaparecimento. São mulheres atualmente sem filhos que, muitas vezes, se reconhecem e são reconhecidas como mães — uma designação comum é "mães de anjo" ou "mães de desaparecido" —, embora os filhos não estejam mais presentes. Outras não se apresentam nem se reconhecem (ou são reconhecidas) enquanto mães, apesar de já terem tido filhos.
No que se refere às mulheres voluntariamente sem filhos (não mães voluntárias) nas plataformas digitais, é comum a premissa de que desejam mais tempo e bem-estar para si mesmas, por isso abrem mão da maternidade. Mas minha pesquisa, principalmente no doutorado, mostra que há mais camadas a serem vistas.
Existem mulheres com histórico pessoal e/ou familiar violento, abusivo, complicado. Elas não querem reproduzir esse ciclo no papel de mães. Então decidem não ter filhos para evitar que eles também se tornem vítimas.
Outras acompanham a crise climática, a crise da democracia, as mazelas sociais, o risco iminente da obliteração da vida tal qual a conhecemos na Terra. Para elas, colocar filhos nesse mundo seria até cruel, já que as futuras gerações (provavelmente) herdarão um planeta muito mais ambiental, política e socialmente precário.
Há aquelas que percebem que, mesmo trabalhando muito, não teriam condições de arcar com todos os custos e investimentos necessários para criar filhos da maneira que julgam adequada. Outras notam que em suas rotinas (atribuladas, exaustivas, pesadas) não existe espaço ou condições para filhos. Assim, a opção por não ser mãe se mostra a única possível.
Algumas mulheres tiveram que maternar pessoas próximas ao longo da vida: irmãos mais novos, parentes idosos, alguém que necessitava de cuidados intensivos. São mulheres com trajetória de vida pesada, não raramente sofrida, que tiveram que amadurecer antes do tempo. Muitas delas sentem que já vivenciaram a experiência de serem figuras maternas, até mesmo de arcarem com as responsabilidades e a rotina de mães. Não desejam passar por isso novamente. Até porque várias continuam responsáveis pelos cuidados constantes de alguém, sentem que não seriam capazes de acrescentar mais uma pessoa a esse cotidiano de maternagem. Do mesmo modo, há mulheres que são as principais cuidadoras de (mais de um) alguém. Esse cuidado toma boa parte de seu tempo, finanças e/ou energia. Por isso, sentem que não têm condições de assumir o papel de mães.
Também se encontram mulheres que afirmam nunca terem tido vontade de ser mães e/ou que não atribuem o desejo de permanecer sem filhos a alguma motivação específica. É algo que elas não querem, nunca quiseram, e sentem que não precisam dar explicações sobre isso.
Há mulheres que enxergam a não maternidade como afronte a um modelo social e econômico que explora o trabalho reprodutivo feminino. Não ter filhos, para elas, é disruptivo. Revolucionário. Libertador.
Outras entendem que a maternidade as deixaria fechadas em si mesmas e em suas próprias famílias, preferindo atuar de forma mais ampla para trazer melhorias coletivas. Para elas, é mais importante (e/ou necessário) impactar positivamente o maior número possível de vidas (projetos, causas etc.) do que dirigir esse impacto para o núcleo familiar, no papel de mães.
Encontramos, ainda, mulheres antinatalistas, que acreditam que mais ninguém deveria nascer em um mundo que consideram tão sofrido. Devido a esse posicionamento, se opõem à maternidade biológica enquanto parte de seu planejamento pessoal. Vale salientar que o antinatalismo não se opõe à adoção, visto que são crianças ou adolescentes que já existem, ou seja, os pais adotivos acolheriam alguém que foi colocado no mundo por outras pessoas.
Mulheres voluntariamente celibatárias ou que apresentam tocofobia (fobia de gravidez e/ou de engravidar) também são encontradas entre as que escolhem não ter filhos. No caso delas, o medo de engravidar é tão grande que podem abrir mão de uma vida sexual ativa com homens (ou pessoas com pênis) para não correr o menor risco de obter uma gestação.
E, claro, encontramos mulheres sem filhos que dizem que dão mais valor a seus planos e lazeres pessoais do que aos esforços que teriam que fazer para criar filhos. Vivemos em uma cultura na qual mulheres são ensinadas a servir. Existe a expectativa e a cobrança para que estejam à disposição dos outros, principalmente em um papel maternal. Nesse contexto, não é pouca coisa uma mulher afirmar que coloca sua qualidade de vida, seus desejos e suas necessidades acima de outra pessoa. E isso não classifica egoísmo porque a pessoa em questão é um filho que sequer existe.
Portanto essas mulheres que afirmam "se colocar em primeiro lugar" estão rompendo com práticas históricas opressivas que incidem sobre o gênero feminino. Algo que também precisa ser reconhecido. Ainda que tal comportamento não deixe de refletir os ideais de autonomia e liberdade difundidos pelo neoliberalismo contemporâneo. Mesmo assim, é preciso refletir: priorizar a si mesma na vida pessoal não significa se tornar alheia às questões sociais.
Quer contribuir com essa pesquisa?
Responda o questionário ou o envie para quem que possa respondê-lo. Eu exploro essas e outras dinâmicas na minha atual pesquisa de doutorado. O objetivo é apresentar a variedade das mulheres sem filhos nas plataformas digitais, com foco nas comunidades on-line criadas por e para elas.
Vamos dar camadas à não maternidade juntas!
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Gostou desse artigo? Acompanhe o Nota de rodapé para mais discussões.
Confira aqui a parte 1, a parte 2 e a parte 3 do post sobre quem são as mulheres sem filhos nas plataformas digitais em formato compacto.
Essa e outras temáticas são melhor exploradas no livro “Ser mãe é f*d@!”: mulheres, (não) maternidade e mídias sociais.
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