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  • Foto do escritorAna Luiza de Figueiredo Souza

Mães abusivas: uma realidade ainda tabu

Atualizado: 3 de jul. de 2022

Quando falamos em romper com a idealização da maternidade, basicamente estamos nos referindo ao processo de entender e enxergar as mães como seres humanos, e não como uma categoria humana (ou divina) à parte que tem todas as respostas, nutre o maior amor do universo, jamais se exalta. Mães são pessoas. A afirmativa, um tanto banal, parece escapar à nossa percepção cotidiana. Mães são pessoas que erram, que ficam confusas, que cansam, que se frustram, que constroem, que destroem. Como toda pessoa, são capazes de atitudes maravilhosas e, também, terríveis. Essa faceta materna mais sombria tem ganhado maior destaque midiático e é sobre ela que vamos conversar nesse artigo, com versão também publicada no site do NIEM.


O que acontece quando aquela mulher colocada como a maior protetora dos filhos se torna a causa do sofrimento deles? Casos de abuso materno costumam virar manchetes que geram rebuliço entre a população. Isso se dá por alguns motivos. O primeiro deles é a importância social que a criança (e, em menor extensão, o adolescente) ganha(m) no contexto contemporâneo, resultado de uma série de movimentos históricos que resultaram na ideia de que crianças e adolescentes precisam ser protegidos, amparados, amados, ouvidos, cuidados, respeitados, estimulados, entre tantos outros requisitos que se somam à lista de exigências que os adultos precisam cumprir ao se relacionarem com eles, sejam seus pais ou não. Dentro da família, entendida como principal responsável pelo bem-estar de crianças e jovens, uma figura ganha destaque nessa dinâmica. A mãe.


E esse é o segundo motivo pelo qual casos de abuso materno causam tamanha comoção. A imagem da mãe como ser incondicionalmente amoroso, disposta a todos os sacrifícios pelos filhos, é tão forte no imaginário coletivo que comportamentos maternos que destoem desse ideal abalam as referências que nos orientam enquanto indivíduos e como sociedade.


Existe a crença de que mães sempre têm o bem-estar dos filhos em primeiro lugar. Quando cometem erros, é por amor aos filhos, para fazê-los felizes, cuidar deles. Isso nem sempre é verdade. Mesmo sendo o caso, não quer dizer que todas as suas atitudes devem ser aceitas ou consideradas adequadas só porque têm afeto pelos filhos. Uma mãe pode amar muito seus filhos e, ainda assim, ter atitudes extremamente prejudiciais a eles por ignorância, por algum transtorno psicológico, por influências externas, por má orientação, por falta de estrutura, por negligência. E há mães que, simplesmente, não amam os filhos. Ou que têm sentimentos bastante ambíguos em relação a eles. Ou que dão preferência a outros amores e afetos.


O terceiro motivo é o fato de que casos de abuso materno são menos comuns quando comparados a casos de abuso paterno. Do mesmo modo, denúncias sobre mães negligentes, ausentes ou problemáticas são menos abundantes do que denúncias sobre pais que apresentam essas características. Em um modelo de organização social baseado em famílias nucleares, especialmente as heteronormativas, a dupla “pai” e “mãe” serve de guia para o que se encontra desde relações interpessoais até agendas políticas. Nessa dupla, a mãe não tem tanto costume de aparecer como a vilã da história. Ao contrário, surge como salvadora, quem resolve as situações para resguardar os filhos.


Aquilo que é mais raro se um torna acontecimento mais interessante de ser noticiado (e prolongado). Logo, as manchetes sobre casos de abuso materno respondem a essa demanda. Ao compararem o comportamento das mães abusivas com o que seria considerado o comportamento de boas mães, tais notícias também suprem nossa demanda por preservar o ideal materno intacto.


Caso Rhuan Maycon, mutilado e esquartejado pela mãe e outra figura materna, a madrasta. Caso Henry, com mãe e avó negligentes diante das agressões praticadas pelo padrasto. Caso Ketelen Vitória, quando a mãe e a madrasta foram diretamente responsáveis pelos maus-tratos recorrentes que resultaram na morte da menina. Esses são alguns exemplos recentes desse tipo de manchete.


Nas mídias sociais, páginas e grupos dedicados à discussão sobre mães abusivas (alguns dos quais podem ser achados aqui), compartilham relatos de filhas e filhos que cresceram com mães que propositalmente os coloca(va)m em situações degradantes e/ou dolorosas. Publicações sobre o tema podem ser facilmente encontradas em sites voltados a esse tipo de discussão ou em portais de conteúdo que exploram problemáticas relacionadas tanto à área de Psicologia quanto a questões familiares e femininas. Mães narcisistas e depressivas são as mais comuns entre as abusadoras, embora haja agressões com motivação sexista, racista, capacitista ou LGBTQIA+fóbica. Fenômenos como esses, mais uma vez, rompem com a imagem de mãe enquanto necessariamente amorosa, zelosa, guardiã dos filhos.


Há, ainda, casos mais complexos, quando as mães podem se tornar abusivas ou causarem mal aos filhos mesmo sem terem essa intenção ou consciência. Tanto os discursos tradicionais, de naturalização da maternagem a mãe, e só a mãe, sabe o que é melhor para o filho quanto discursos mais recentes sobre o peso da rotina materna que justifica possíveis relapsos ou condutas danosas podem servir para desvincular as mães do impacto de suas ações sobre os filhos. Questão que não deixa de ser delicada.


Por um lado, existe uma responsabilização desproporcional das mães, colocadas como as principais responsáveis por tudo que envolva a vida dos filhos, mesmo aspectos pertencentes à esfera pública, ao Estado, à legislação. Precisam ser capazes de contornar qualquer precariedade estrutural para oferecerem a melhor maternagem a eles. Por outro, a faceta da responsabilidade é inerente ao exercício da parentalidade e as conjunturas nas quais uma mãe se insere, por mais amargas que sejam, não anulam as agruras que tenha causado aos filhos.


Interessante perceber que a imagem benevolente da mãe está tão sedimentada em nosso arcabouço sociocultural que se afasta de dados que apontam que as agressões maternas não somam número tão pequeno assim.


O Disque 100 é um canal para recebimento de denúncias do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). Dados colhidos entre 2012 e 2017 por meio dele revelam que as mães são as mais denunciadas por violações contra crianças e adolescentes. Nos relatos feitos por telefone, geralmente de forma anônima, a maior parte das acusações — físicas, psicológicas e sexuais — ocorre dentro da casa das vítimas. Em 2017, último ano disponível para consulta no site do MMFDH, as mães foram responsáveis por 37,44% das denúncias. Em 2015, esse número foi de 40,06%. E é aí que entramos em território cabuloso.


Por mais que existam mães agressoras — e isso precisa ser discutido, até em respeito às vítimas —, também existe maior cobrança em relação ao desempenho parental materno. Isso significa que há maior probabilidade de uma mãe ser classificada como relapsa, incompetente ou problemática do que um pai e mesmo um parente ou profissional (professor, médico, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo etc.) que lide com a criança ou o adolescente.


Um caso emblemático é o da estadunidense Molly Lensing, que foi clicada em 2016 mexendo no celular por um usuário do Twitter no saguão de um aeroporto em Atlanta, enquanto sua filha, à época com 2 meses, estava deitada no chão, sobre uma toalha. A imagem logo circulou por outras plataformas. Milhares de pessoas acusaram a mãe de negligência, por supostamente ter preferido passar tempo nas mídias sociais a zelar pelo conforto e proteção do bebê. Dias depois, o contexto da foto veio à tona: a companhia aérea Delta Airlines sofreu uma falha no sistema de informática, fazendo com que vários voos, inclusive a conexão que Molly esperava na hora do clique, fossem repetidamente cancelados. Era a terceira noite que ela havia dormido no chão do aeroporto, ao lado da filha. Diante de mais uma negativa da companhia aérea, usou o celular para pedir aos pais que viessem buscá-las. Nesse momento, ocorreu o aparente flagrante de descaso materno. A repercussão foi tamanha que, anos depois, a imagem voltou a circular pelas mídias sociais, gerando igual revolta e indignação nos usuários.


Junta-se a isso o fato de que, segundo o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), as denúncias realizadas pelo Disque 100 raramente levam a alguma investigação, o que impossibilita ter certeza sobre a autoria das violências denunciadas. Acusar uma mãe de maus-tratos ou de maternagem problemática pode, inclusive, ser estratégia por parte de quem pretende retirar dela a guarda da(s) criança(s), difamá-la ou chantageá-la.


Longe de querer deslegitimar as (corajosas) denúncias daqueles que sofreram qualquer tipo de abuso por parte de mães, nem retirar delas a responsabilidade pelo que fizeram, muito menos dizer que qualquer erro materno é passível de amenizações contextuais. Há alguns parágrafos frisei justamente esses aspectos. Apenas atento para o fato de que mulheres, dentro de sociedades e culturas misóginas, passam por muito sofrimento ao longo da vida. Temos uma população feminina traumatizada, ferida, alvo constante de agressões tanto estruturais quanto vindas do gênero masculino. Seria plausível pensar que tamanha violência poderia surtir efeitos como agressividade ou manipulação sobre pessoas mais fragilizadas do que elas em dinâmicas interpessoais. No caso, os filhos. Cabe, ainda, perguntar: onde estavam os pais dessas crianças e jovens abusados? Sempre perguntam pela mãe diante de casos de pais abusivos, mas o contrário é menos frequente. E onde estava o restante da família? A vizinhança? A lei?


Desfechos violentos têm muitos cúmplices. Precisamos reconhecer nossa participação em um modo de funcionamento social que constantemente agride e penaliza indivíduos em alguma situação de fragilidade. Indivíduos estes que, sejam homens ou mulheres, podem reproduzir esse ciclo de violência ao se tornarem adultos (ou mesmo antes disso). A principal diferença é que, para homens, a tolerância e o estímulo para atos violentos são maiores. Não à toa tantos se tornam agressores, sobretudo de mulheres e crianças. Enquanto para mulheres esse tipo de comportamento costuma ser cerceado. Se toda mulher que já sofreu violência física, sexual, psicológica, afetiva ou moral (sem falar no assédio no trabalho e nos espaços públicos) reproduzisse isso com quem se relacionasse, convenhamos que viveríamos em um mundo em que elas seriam responsáveis pela maioria das violências. Mas não são.


Todos nós estamos inseridos em contextos socioculturais. Devemos entendê-los, identificar estruturas violentas para que possamos combater as causas desses males. Contudo, também precisamos ter cuidado para não justificar as violências praticadas por pessoas dentro desses contextos. Apontar as raízes de alguns problemas não significa compactuar com eles ou suas consequências.


Tenho a convicção de que mães abusivas tanto ampliam possibilidades de leitura sobre atitudes e a própria imagem materna(s), bem como da relação mãe e filho, quanto evidenciam problemas estruturais mais amplos do que a maternagem, mas que repercutem sobre ela.


Às vítimas, deixo aqui minha solidariedade e o pedido para que, se necessário, busquem ajuda psicológica profissional. Esse tipo de vivência materna pode deixar marcas que vocês não precisam superar sozinhas/os/es.


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Gostou desse artigo? Acompanhe o Nota de rodapé para publicações semelhantes.


Confira aqui o post sobre mães abusivas em formato compacto.


Essa e outras temáticas são melhor exploradas no livro Ser mãe é f*d@!”: mulheres, (não) maternidade e mídias sociais.



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